Lei Complementar nº 204/2023 (PLP 116/2023) e Convênio ICMS nº 178/2023: conflito regulamentar sobre a transferência de créditos de ICMS

A possibilidade ou não da cobrança do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte não é novidade no Poder Judiciário, já tendo sido, inclusive, objeto da Súmula nº 166[1] do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Contudo, em 2017, a questão veio novamente à tona quando o governo do Rio Grande do Norte ajuizou a ADC nº 49, buscando obter a declaração de constitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar 87/96 (“Lei Kandir”) que consideram a transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular como fato gerador do ICMS. De acordo com os argumentos expostos na inicial, a Súmula nº 166 não declara expressamente a inconstitucionalidade dos dispositivos da referida Lei, gerando insegurança jurídica sobre a questão.

O mérito da ADC nº 49 foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, ocasião em que a ação foi julgada improcedente, tendo sido declarada a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II[2], 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”[3], e 13, §4º[4], da Lei Kandir. Além disso, restou definido que contribuinte não apenas tem o direito à manutenção dos créditos relativos às operações anteriores, como pode também realizar a transferência desses créditos, de acordo com o tratamento previsto em cada Estado – o STF concedeu o prazo de até 31/12/2023 para os Estados regulamentarem a transferência de créditos em seu território.

Posteriormente, os efeitos dessa decisão foram modulados para que tivessem eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito.

Dessa forma, restou consignado pela Corte Maior que a mera saída física da mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular não configura fato gerador do ICMS e que os créditos relativos às operações anteriores poderiam ser mantidos e transferidos entre os estabelecimentos do contribuinte.

Convênio ICMS nº 178/2023

Visando regulamentar a questão, o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) publicou o Convênio ICMS nº 174/2023, dispondo sobre os procedimentos a serem seguidos na remessa interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade. Contudo, o CONFAZ precisou declarar a rejeição dessa regulamentação, considerando que, nos termos da cláusula quinta do Convênio[5], a sua eficácia estava vinculada à ratificação nacional e o Estado do Rio de Janeiro havia se manifestado pela sua não ratificação.

Para contornar esse problema, o CONFAZ publicou (sem a assinatura do Estado do Amazonas) o Convênio ICMS nº 178/2023 com um texto bastante similar ao anterior, exceto quanto ao quórum de aprovação. O principal ponto tratado no Convênio publicado diz respeito à obrigatoriedade da transferência de créditos entre o estabelecimento de origem e o de destino, com as seguintes observações:

  • a operação deve se dar mediante a consignação do respectivo valor na Nota Fiscal eletrônica (NF-e) que a acobertar, no campo destinado ao destaque do imposto;
  • para a determinação do valor do crédito a ser transferido, o cálculo do imposto deve ser realizado “por dentro”, considerando as alíquotas interestaduais sobre o valor da mercadoria ou custo de produção;
  • a apropriação do crédito pelo estabelecimento destinatário se dará por meio de transferência, pelo estabelecimento remetente, do ICMS incidente nas operações e prestações anteriores, com lançamento a débito na escrituração do estabelecimento remetente, mediante o registro do documento no Registro de Saídas, e a crédito na escrituração do estabelecimento destinatário, mediante o registro do documento no Registro de Entradas; e
  • a utilização da sistemática prevista no convênio não importa no cancelamento ou modificação dos benefícios fiscais concedidos pela unidade federada de origem, hipótese em que, quando for o caso, deverá ser efetuado o lançamento de um débito, equiparado ao estorno de crédito previsto na legislação tributária instituidora do benefício fiscal.

A publicação desse Convênio foi amplamente questionada pelos contribuintes, uma vez que contraria a decisão do STF na ADC nº 49 ao tornar obrigatória a transferência de créditos de ICMS, o que havia sido apenas facultado ao contribuinte pelo Supremo.

Lei Complementar nº 204/2023 (PLP 116/2023)

Poucos dias após a publicação do Convênio ICMS nº 178/2023, a Câmara dos Deputados aprovou o PLP 116/2023 (apensado ao PLP 153/2015), que veda expressamente a incidência do ICMS nas operações interestaduais entre empresas do mesmo titular e regulamenta a transferência de créditos nessas ocasiões. No final de dezembro de 2023, o PLP foi sancionado pelo Presidente da República, tendo sido convertido na Lei Complementar nº 204/2023.

Especificamente no que tange à tomada de créditos, o PLP estabelecia duas opções alternativas: (i) transferência do crédito para o Estado de destino até o limite das alíquotas interestaduais em vigor e a manutenção pelo remetente da diferença positiva entre o crédito original e o transferido; ou (ii) equiparação da transferência à operação regularmente tributada, ou seja, pagamento do tributo estadual na transferência da mercadoria. A segunda opção, contudo, foi vetada pela Presidência da República.

Como se pode observar, o PLP convertido em Lei contraria o disposto no Convênio ICMS nº 178/2023, pois estabelece a faculdade – e não obrigatoriedade – do contribuinte em relação à transferência de créditos de ICMS.

A Lei Complementar nº 204/2023 revogou § 4º do art. 13 da Lei Kandir e entrou em vigor em 1º de janeiro de 2024.

Conclusão

Por meio do Convênio ICMS nº 178/2023, o CONFAZ tornou obrigatória a transferência dos créditos de ICMS nas operações de remessa de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. Essa obrigatoriedade contraria a decisão do STF na ADC nº 49, como acima exposto, e, a depender do caso, pode ser prejudicial para o contribuinte.

Por outro lado, o PLP 116/2023, convertido na Lei Complementar nº 204/2023, apesar de contrariar o Convênio ICMS nº 178/2023, se mostra em linha com o que foi decidido pelo STF na ADC nº 49, pois mantém a facultatividade da transferência dos créditos de ICMS pelos contribuintes no caso de circulação física de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica.

Diante da sanção presidencial do PLP 116/2023, duas situações são possíveis: (i) os Estados judicializarem a questão alegando que cabia a cada unidade federada regulamentar a transferência de créditos nas remessas entre estabelecimentos do mesmo titular; ou (ii) ser publicado um novo Convênio pelo CONFAZ, alinhado à nova Lei Complementar nº 204/2023.  

Fato é que o cenário atual reforça a insegurança jurídica e imprevisibilidade do tema no Brasil, uma vez que não há clareza sobre o procedimento que o contribuinte deverá seguir perante os Fiscos estaduais, sem prejudicar o seu direito assegurado pelo STF e, agora, pela Lei Complementar nº 204/2023. Será necessário, portanto, aguardar os desdobramentos que virão a seguir, em especial, quanto ao posicionamento do CONFAZ diante da nova legislação já em vigor.

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